A prática do jejum, enquanto abstenção voluntária da
ingestão de alimentos [ou outras abstenções voluntárias] durante um determinado
período de tempo, continua sendo importante para o cultivo da espiritualidade.
Por toda a Bíblia encontramos passagens com menção ao jejum como forma de
oração, ou como algo que acompanha a oração, e que - para Deus - diz alguma
coisa importante (sobre nossas prioridades, nossa devoção, nossa fé).
O jejum, dessa forma, ataca diretamente o nosso
impulso vital pela comida e pela bebida [considerando este viés, que é o mais
importante]. Apesar do apetite ser algo necessário à sobrevivência, não podemos
viver em função da comida. Seria ridículo se fôssemos tão incontinentes por
causa da comida a ponto de atropelar os valores racionais e espirituais da
nossa existência. Mas se voltarmos ao Éden, veremos que foi mais ou menos isso
que Adão e Eva fizeram, declarando para Deus - com sua atitude sem freio - de insana curiosidade - que
o desejo da carne era mais importante do que dar ouvidos à voz de Deus.
O jejum é tão importante que Jesus Cristo começou o seu
ministério jejuando 40 dias. Naquilo em que o primeiro Adão cedeu, dando mais
importância ao valor terreno das coisas, conforme ditado pela sua necessidade
física (legítima, mas nem por isso absoluta), o segundo Adão, por sua vez,
venceu justamente porque não aceitou jogar para o fim da fila os valores
espirituais do Reino de Deus, reconhecendo que “nem só de pão viverá o homem,
mas de toda Palavra que sai da boca de Deus” (Mateus 4:4). Com sua atitude,
Jesus estava dizendo: “Primeiro o Reino de Deus, primeiro a vontade do meu Pai
que está no Céu, primeiro a obediência à ordenação divina”. A vontade da carne
jamais foi o motor do ministério de Jesus, pelo contrário, sua comida era fazer
a vontade do Pai e realizar a sua obra (João 4:34).
Ora, todo dia somos confrontados com esse mesmo
apelo da carne, que em si não tem nada demais, mas que, porém, quando se torna
o fator determinante das nossas ações, leva-nos a agir como animais
irracionais, que vivem em função exclusiva do corpo físico, dos seus apetites
carnais, do desejo incontrolado por satisfação própria. Assim, o jejum serve
para evidenciar para nós mesmos, em primeiro lugar, que a vontade do homem tem
que estar sujeita ao propósito divino, que não somos senhores de nós mesmos,
que a nossa necessidade física e material não determina a nossa vida. Em
segundo lugar, serve para mostrar para Deus e toda a nuvem de testemunhas que
povoa o reino espiritual, que nossa prioridade é buscar, conhecer e fazer a
vontade de Deus, não importa quanto isso nos custe.
A pessoa que vive em função do seu ego busca
sempre satisfazer os seus interesses em primeiro lugar e essa forma de vida
egoísta não permite o desenvolvimento espiritual. Quem age assim fica refém dos
seus próprios desejos e é o primeiro a querer safar-se numa situação de
“salve-se quem puder”, tornando-se réprobo para o serviço do Reino de Deus. Se
alguém tiver chamada pastoral, vai ter que enfrentar o lobo quando este
arremeter contra as ovelhas, mesmo que essa atitude implique risco. O
mercenário foge, diz a Bíblia, mas o verdadeiro pastor defende o rebanho. Mas o
que isso tem a ver com jejum? Quem está disposto a abrir mão da comida, mostra
que também está apto a abrir mão de outros impedimentos ao seu fecundo
ministério. O jejum revela alguém capaz de renunciar direitos em favor da
misericórdia, ou de renunciar vontades em favor de propósitos mais elevados.
Dessa maneira, o jejum é um passo inicial numa caminhada mais longa, rumo à
perfeição ou ao amadurecimento espiritual.
Do ponto de vista devocional, o jejum associa-se
à oração, o que confere mais intensidade à busca por aquilo que realmente
importa. Jesus mesmo disse que determinadas castas de demônios só podiam sair
com jejum e oração (Mateus 17:21). Não sei precisar o motivo exato dessa
condição, mas posso garantir que Jesus sabia o que dizia. No entanto, a gente
depreende que o jejum e a oração são termômetros da nossa vida espiritual, da
intensidade da nossa busca. Quem mais busca, mais recebe, simples assim. Não
adianta eu dizer que busco a Deus, se as minhas obras contradizem a minha fala,
ou se a minha prática não o demonstra.
Enquanto estamos neste tabernáculo corruptível,
precisamos aprender a prestar a Deus o nosso culto racional, no qual todo o
nosso espírito e alma e corpo são apresentados irrepreensíveis diante dEle em
amor (1 Tessalonicenses 5:23). Jesus, citando o Deuteronômio, nos ordena:
“Amarás, pois, ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma,
e de todo o teu entendimento, e de todas as tuas forças; este é o primeiro
mandamento” (Marcos 12:30). Assim, não há opção para servir a Deus pela metade,
ou apresentar a Ele uma dedicação incompleta: “Maldito aquele que fizer a obra
do Senhor negligentemente” (Jeremias 48:10a).
Todas as nossas forças deverão ser empregadas no
serviço requerido por Deus, como prova do nosso amor para com Ele. Nesse
aspecto, o jejum prova até certo ponto nossa dedicação às coisas sagradas,
sendo corroborado com a oração.
Outro aspecto importante do Jejum é que este se
torna o primeiro passo para ter controle de si mesmo ou domínio próprio. Quando
nos privamos no nível básico e elementar, no tocante às nossas necessidades
fisiológicas, estamos adquirindo aptidão para nos controlarmos também no nível
mais elevado da nossa espiritualidade, quando as intenções do coração forem
postas à prova, para que recebamos o louvor (e não desonra).
Quem renuncia a um bem menor está habilitando-se
ao gozo de um bem maior. O abrir mão de manjares passageiros, ou de vantagens
imediatas, denota maturidade espiritual. Assim também Jesus, “pelo gozo que lhe
estava proposto, suportou a cruz, desprezando a afronta, e assentou-se à destra
do trono de Deus” (Hebreus 12:2). Uma criança por exemplo, não sabe dizer não a
um doce ou parar com uma diversão que lhe dá prazer para usufruir daqueles
objetos numa outra oportunidade futura. A criança só vê o aqui e agora. Por
isso, sempre que abdicamos de coisas ou possibilidades temporais,
habilitamo-nos a receber ou alcançar as eternas.
Indo um pouco além do jejum da comida, a Bíblia
destaca outras situações que precisamos aprender a dominar, além da fome. Tiago
afirma, por exemplo, que quem refreia a sua língua, consegue dominar o corpo
todo: “Todos tropeçamos em muitas coisas. Se alguém não tropeça em palavra,
esse é homem perfeito, e capaz de refrear também todo o corpo” (Tiago 3:2).
Deus conhece a nossa estrutura e sabe que não somos perfeitos, por isso o
caminho do desenvolvimento espiritual inclui o exercício do domínio próprio,
exigindo renúncia e negação de si mesmo: “E dizia a todos: Se alguém quer vir
após mim, negue-se a si mesmo, e tome cada dia a sua cruz, e siga-me” (Lucas
9:26).
O jejum, portanto, é uma forma
de negação de si mesmo, de sacrifício espiritual agradável a Deus, dentro do
contexto mais amplo da verdadeira religiosidade, pois não é apenas um ritual
ascético ou um mandamento legalista, mas um meio prático de comunicar nossa
verdadeira prioridade, a qual deve ser sempre Deus, o seu Reino, as suas
virtudes, a sua vontade. E o maior exemplo desse estilo de vida santo foi e
sempre será Jesus Cristo, nosso precursor, o primogênito entre os irmãos, o
príncipe da nossa salvação, autor e consumador da nossa fé.